sábado, 28 de abril de 2007

Hipotermia e 'paradoxical undressing'

A temperatura do nosso corpo é de geralmente 37ºC, e o estado de hipotermia inicia-se quando a temperatura desce para pelo menos 35ºC. No entanto, o deselvolvimento deste estado pode levar a uma descida de temperatura ainda mais evidente, com simptomas cada vez mais problemáticos. Abaixo dos 30ºC, geralmente entre os 25 e 28ºC a temperatura corporal é tão baixa que o coração pára e a pessoa acaba por morrer.

Como explicar então o caso recorrente de serem encontradas pessoas mortas por hipotermia que aparentemente despiram parte das suas roupas? Isto é muitas vezes associado com casos de violência, como assalto ou violação, mas então porque é que tantas vezes quando estão a ser socorridas as vítimas recusam as mantas de aquecimento? Este fenómeno é chamado de ‘paradoxical undressing’. Esta expressão inglesa resulta da combinação de duas palavras inglesas: undressing, que significa despir, e paradoxical, que obviamente significa paradoxal. Basicamente, indivíduos com hipotermia paradoxalmente comecam a despir-se...

Mas qual a razão para tal comportamento? Bem, é óbvio que uma explicação é difícil de descobrir para os cientistas, ou então não era paradoxal em primeiro lugar! No entanto existe uma teoria que é geralmente aceite...

Quando o estado de hipotermia se inicia, o organismo tenta evitar que pelo menos os órgãos vitais arrefeçam demasiado, e como consequência regula o fluxo de sangue, de tal modo que mais sangue é transportado para a zona central do corpo e reduzindo a chamada circulação periférica. O fenómeno de regulação do fluxo sanguíneo não é exclusivo da hipotermia. Durante a digestão, por exemplo, é normal que o fluxo sanguíneo seja direccionado para os órgãos envolvidos nesta função sem, obviamente, impedir o normal funcionamento do resto do corpo.

No entanto manter o sangue concentrado em certas areas implica fechar ou diminuir a sua circulação para outras áreas do corpo. O processo de contracção dos vasos sanguíneos, impedindo o fluxo de sangue, é chamado de vasoconstrição. A vasoconstrição é possível através da contracção dos músculos lisos que se encontram em torno dos vasos sanguíneos. No entanto este processo exige consumo de energia, fornecida por exemplo pela glucose em circulação.

O processo oposto à vasoconstrição chama-se vasodilatação, e não exige qualquer input the energia- os músculos lisos simplesmente têm de relaxar para o sangue voltar a fluir normalmente.

Durante o desenvolvimento da hipotermia o estado da vitima torna-se cada vez pior- como os vasos periféricos recebem menos circulação, os músculos lisos têm menos combustível disponível, e o cansaço acumula-se. Consequentemente, ao fim de algum tempo os músculos acabam por relaxar, permitindo de novo a circulação do sangue. O fluir do sangue mantido quente noutras zonas do corpo leva a uma sensação de aquecimento. A vítima sente-se quente e por isso começa a tirar as roupas, daí o ‘paradoxical undressing’.

É claro que o despir acaba por ajudar o processo de hipotermia, e a vítima torna-se cada vez mais fria acabando por morrer. Não existe registo de vítimas de hipotermia que tenham sido capazes de sobreviver sem ajuda exterior após terem chegado a este estado.

Outra situação curiosa que ocorre em 20% dos casos letais de hipotermia e o chamado hide-and-die syndrome, ou seja, o sindrome de esconde e morre. Basicamente muitas vítimas de hipotermia que morrem por exemplo, em casas pouco aquecidas, são muitas vezes encontradas debaixo da cama, ou detrás de armários. De facto, existe um caso no Medical Journal of Australia (vol.175, pag 621), que descreve um homem de idade encontrado morto em casa durante o inverno, apenas parcialmente vestido e rodeado de mobília de pernas para o ar. Este comportamento é provavelmente um vestígio de um instinto presente também noutros animais de, basicamente, se as coisas se tornarem más, encontrar algum sítio para se esconder (‘when things get really bad, find somewhere to hide’).

Mais informações em ‘Paradoxical undressing; 21st April 2007, pag 50, New Scientist

sexta-feira, 27 de abril de 2007

Sistema de orientação dos morcegos

Acabei à pouco tempo de ler ‘Drácula’, de Bram Stocker, o que inevitavelmente me fez sonhar algumas noites com morcegos… daqueles que chupam sangue. Claro que existem nesta história várias coisas a clarificar. Em primeiro lugar os famosos morcegos chupadoresde sangue na verdade não chupam sangue nenhum. De um modo ágil e leve são capazes de se alimentar do sangue de vacas, cavalos, porcos e aves, e até ocasionalmente humanos, sem danificar a chamaremos vítima de modo excepcional. Simplesmente causam uma pequena picada com os dentes e removem algum sangue com a língua. Fazem-no de modo tão singelo que um animal pode chegar a passar 30 minutos sem se aperceber que tem um morcego a alimentar-se do seu sangue!

No entanto, hoje não vamos falar de morcegos vampiros. Para além destes existem muitos outros tipos de morcegos com dietas bem diferentes. Existem, por exemplo, morcegos que se alimentam de fruta. Hoje especificamente estes morcegos não nos interessam. Como se alimentam de fruta, caracterizada pelas suas cores atractivas, estes morcegos usam uma visão normal quando procuram comida. Bem mais interessantes são os morcegos insectívoros, ou seja, morcegos que se alimentam de insectos. A característica interessante destes morcegos é a de possuírem um sonar, que lhes permite alimentarem-se de insectos activos apenas à noite. Alimentarem-se de tais insectos é muito bom, pois raros são os outros predadores capazes de explorar estas presas.

O sistema sonar dos morcegos insectívoros é extremamente interessante, especialmente porque pode até parecer que os morcegos sabem engenharia! Por isso o Biocuriosidades de hoje vai falar sobre o sistema de comunicação dos morcegos insectívoros!

De modo a tornar a explicação mais interessante, vou apresentar um conjunto de 4 problemas que os morcegos têm de resolver de modo a serem capazes de caçar à noite. E para cada problema irei apresentar a solução que um engenheiro daria, e a solução que a evolução dos morcegos ao longo de milhar de anos desenvolveu!

O primeiro problema é obviamente a falta de luz. Um engenheiro pode sugerir 3 soluções: produzir luz, caçar de dia (o que não é uma opção para o morcego, já que os insectos de que se alimenta estão disponíveis à noite apenas) ou usar um radar, ou seja, um sistema de navegação alternativo à visão. Os morcegos ficaram-se pela última opção e usam um sistema de radar que é único em animais terrestres (ainda que comum em animais aquáticos como as baleias).

Portanto os morcegos usam ondas sonoras para se orientarem- soltam digamos que um grito e esperam pelo eco para lhes dar informação do que se passa à sua volta. Um important factor é saber a frequência desses sons. O nosso engenheiro sugere uma frequência alta de modo a obter eco de qualidade. O nosso morcego segue a sugestão. Os morcegos emitem sons com uma frequência de 20 000 Hz ou mais. Isto porque a maior parte dos sons no mundo à nossa volta têm uma frequência inferior a 20 000 Hz. Por isso, basicamente, os morcegos vivem num mundo de silêncio excepto para os sons emitidos por si mesmo. Para além disso, cada espécie de morcego irá emitir sons numa frequência característica, de modo a diminuir confusões geradas pelas emissões de outros tipos de morcegos. Esta característica é extremamente útil na identificação de espécies.

A questão seguinte é saber quantas vezes emitir esses sons por cada unidade de tempo. O engenheiro argumenta e muito bem que quanto maior a frequência maior a quantidade de informação obtida sobre o meio. No entanto, a quantidade de energia usada é também maior. Os morcegos resolvem o problema de maneira engenhosa: quando estão simplesmente a movimentar-se e a obter uma visão geral do mundo, emitem sons a cerca de 10 emissões por segundo. Quando estão no acto de caçar, no entanto, as emissões sobem para 200 emissões por segundo, garantindo uma visão detalhada essencial para a captura da presa.

E qual a intensidade do som? O som tem de ser obviamente bastante alto, já que o eco tende a ser 2000 vezes mais fraco do que o som original. Para além disso os morcegos têm ouvidos muito sensíveis, de modo a detectar mesmo os ecos mais fracos. No entanto isto apresenta obviamente um problema- os sons muito altos emitidos podem danificar os ouvidos ultrasensíveis. Um engenheiro sugeriria que o receptor fosse desligado antes do som ser emitido, e é isso que os morcegos fazem. Quando os sons são emitidos, os ouvidos dos morcegos tornam-se menos sensíveis pela contracção automática de um músculo específico no ouvido do morcego.

Mas tudo isto não explica o modo como os morcegos conseguem obter informação acerca do que se passa à sua volta apenas a partir apenas do eco. Na verdade, os morcegos exploram essas ondas sonoras ao máximo. De modo a retirar tanta informação quanto possível. O intervalo de tempo entre a emissão do som e a chegada do eco, por exemplo, informa sobre a distância entre o morcego e a sua presa. O ângulo de chegada do som, por outro lado, é capaz de indicar o tamanho do insecto a ser caçado. Os morcegos utilizam também a diferença de tempo entre a chegada do som a um ouvido e a outro como uma indicação da direcção da presa. Finalmente, a interferência entre o eco no topo e no fundo das orelhas (caracteristicamente longas no caso dos morcegos) pode fornecer informação sobre a elevação relativa entre presa e predador.

Baseado no capítulo 2 ('Good design') do livro 'The Blind Watchmaker' de Richard Dawkins

Pássaros que gritam lobo

Existe uma ideia generalizada de que o Homem e o unico animal realmente vil… afinal, pensamos nós, somos os únicos capazes de nos enganar uns aos outros... Quero dizer, nenhum animal é capaz de mentir, não é?

Acontece que a mentira é mais generalizada no reino animal do que pensamos. Aqui vai um exemplo curioso: Todos nos conhecemos a história de João e o Lobo. João era um pastorzinho que nas horas vagas se divertia a assustar os habitantes da sua aldeia, gritando que um lobo lhe atacava o rebanho... quando na verdade tudo estava bem. Uma daquelas mentirazinhas tipicamente humanas, não é? Bem, por mais incrível que pareça, é exactamente isso que fazem duas espécies de pássaros (Thamnomanes schystogynus e Lanio versicolor).

Estas curiosas aves vivem em bandos com outras espécies de pássaros. No entanto, dentro do bando as diferentes especies têm diferentes funções: As cacadoras, que se ocupam da caça de insectos, e estas duas espécies, que funcionam como sentinelas. A sua função é simples: verificar constantemente se algum predador, tal como um falcão, se aproxima. Se tal acontece, as sentinelas lançam um grito de alerta, e todas as aves do bando procuram refúgio. No entanto as sentinelas, de vigia, não podem passar o tempo a cacar. Que fazer, então, quando uma das aves caçadoras voa por perto perseguindo um delicioso insecto? A resposta é bastante óbvia. A sentinela simplesmente lança o grito de alerta, fazendo com que a cacadora fuga. Assim, a costa fica livre para capturar o insecto. Em suma, as sentinelas gritam lobo. Aqui, no entanto, cessa a comparacao com a história do Joao. A história do pastor teve um final infeliz- eventualmente um lobo atacou realmente as ovelhas, e os habitantes da aldeia, fartos de serem enganados, ignoram os genuínos gritos de socorro. A história das sentinelas tem um final mais feliz, já que as cacadoras geralmente não ignoram os gritos de alerta. Porquê? Apesar de parecer muito esperto ignorar um grito de alerta, muitas vezes o risco de o fazer é simplesmente muito alto... Uma caçadora concentrada na caça, não sabe se existe realmente um falcão por perto... e ignorar um alerta verdadeiro pode significar a morte a maior parte das vezes. O custo de se esconder é apenas perder um insecto... e de qualquer forma há bastantes por perto. Para além disso, as cacadoras também não são tolas. Quando uma caçadora se encontra em espaco aberto, onde ela própria tem acesso a todo o espaço visual, só foge quando vê ela própria um predador... É tudo uma questão de pesar os riscos e as vantagens… e escolher o que é mais vantajoso. O mesmo acontece com outros animais ditos mentirosos- nem sempre mentir ou recusar a mentira é vantajoso. Assim parece que para além de mentir, os animais também percebem de economia...
Baseado em Munn, C. (1986). Birds that ‘cry wolf’, Nature, 319 (9). Pp143- 145

quinta-feira, 26 de abril de 2007

Os dentes e o esforço de guerra

Quando pensamos em esforço de guerra e acções bélicas, vêm-nos logo à ideia imagens de tanques, armas, bombas, mísseis, etc. Mas então e os dentes? Ok, não estou propriamente a falar de ganhar uma guerra mordendo o adversário até à morte… no entanto, na revista New Scientist de 10 Março vem um artigo interessantíssimo que mostra como dentes saudáveis podem ser mais importantes, até para generais, do que pode parecer à primeira vista…

O artigo fala-nos do exército inglês. Aparentemente durante o século XVII e séculos posteriores, possuir bons dentes parecia ser essencial para um soldado- os cirurgiões do exército levavam consigo instrumentos para remover dentes, e os critérios de entrada no exército especificavam a qualidade dentária que um soldado deveria ter. E, de facto, para certos tipos de soldado tais critérios eram essenciais. Um mosqueteiro (dos que usavam o mosquete, não os de capa e espada) precisavam por exemplo de bons dentes frontais de modo a poder puxar rapidamente a tampa de madeira das bolsas com pólvora antes de a usarem para carregar as suas armas…

O problema é que no século XIX o exército substituíu as antigas granadas e mosquetes por armas mais sofisticadas, e a qualidade dos dentes deixou de ser um critério de selecção… e isto ao mesmo tempo em que a quantidade de açúcar consumida aumentou… com consequências lógicas… De início nenhuma importância foi dada a doenças dentárias nos soldados, mas com o tempo generais começaram a aperceber-se de que estas podiam ser tão importantes numa campanha militar como outras doenças infecciosas.

O efeito mais óbvio foi durante a guerra entre Inglaterra e a República Bóer Sul africana. Os britânicos acreditavam que a guerra iria acabar rapidamente, mas uma série de derrotas em Dezembro de 1899 obrigou o envio de mais tropas. E a pressa foi tal que nem a inspecção mínima foi feita aos dentes dos soldados… Assim, durante a guerra os ingleses enfrentaram 3 grandes inimigos: os Boers, doenças como a febre tifóide e a disenteria… e a queda dentária. Os médicos do exército não possuíam técnicas nem meios para tratar dentes, e os soldados eram forçados a arrancar os seus próprios dentes, ou a encher as cavidades corridas com tudo o que encontrassem, desde tabaco, a borracha de botas. Mas nada feito.

Há medida que a qualidade dos dentes decaía, os soldados começaram a aperceber-se que não conseguiam comer: o tipo de duro biscoito e outros tipos de alimentos dados ao exército eram claramente demasiado para os fracos dentes dos soldados. De tal modo que um oficial reportou aos seus superiores que mesmo soldados com uns dentes em condições mais ou menos razoáveis nunca saberiam se os primeiros a desaparecer numa refeição seriam os dentes ou o biscoito!

E assim veio a grande ironia- depois de outras guerras ganhas com esforço por causa de falta de cuidados médicos ou de higiene, os ingleses esmeraram-se na introdução de condições de higiene, nas anestesias, nos antisépticos, na recruta de centenas de cirurgiões em 10 hospitais de campo… e apesar disso os homens continuavam a morrer devido à incapacidade de se alimentar com as rações militares!

O primeiro a fazer alguma coisa acerca do problema foi Frederick Newland Pedley, um famoso dentista inglês que se ofereceu para partir para a guerra para curar maxilas partidas devido a balas inimigas, e acabou a tratar dentes e dentes que nada tinham a ver com ataques do outro lado. E isto tendo de pagar todo o equipamento, viagem, etc, já que o exército continuava a não admitir a importância de dentistas numa guerra.

E os números são impressionantes. Durante a guerra dos boers, 8000 homens foram perdidos nas batalhas. Igual número morreu de doenças dentárias. Para além disso, cerca de 2000 tiveram de ser evacuados por causa de problemas nos dentes e 5000 tiveram de ser considerados inaptos porque não existiam dentaduras para substituir os dentes perdidos!

Depois de 6 meses na guerra, Pedley voltou a Londres determinado a criar um corpo de dentistas militares. Apenas 4 foram enviados para África…

A guerra dos Boers acabou em 1902. Quando a primeira guerra mundial começou 12 anos mais tarde, o exército inglês ainda não tinha dentistas… e os mesmos problemas voltaram a acontecer. Durante a desastrosa campanha de Gallipoli em 1915, por exemplo, 600 homens de uma única divisão de companhia tiveram de ser evacuados por causa dos seus dentes!

Eventualmente o exército arranjou o seu corpo de dentistas… e porquê? Por razões óbvias- um Comandante do exército inglês em França teve dores de dentes, e o exército viu-se obrigado a chamar um dentista de Paris! Uma dúzia foram então chamados ao serviço, e por volta de 1928 já existiam cerca de 813. Só anos mais tarde, no entanto, teve o exército o seu corpo oficial de dentistas…

Enfim não se pode subestimar nem as mais pequenas contribuições para o esforço de guerra… nem a vantagem de ter um oficial superior com as mesmas mazelas!


Baseado no artigo 'Can't bite, can't fight', em New Scientist de 10 Março, 2007