quinta-feira, 21 de junho de 2007

Bocejar ajuda-nos a arrefecer?

Bocejar é uma daquelas acções semi-voluntárias características não só dos seres humanos como da maioria dos vertebrados… O acto de bocejar é acompanhado de várias modificações fisiológicas e neurológicas, desde o esticar dos músculos até à sensação de prazer associada à libertação de dopamina em certas áreas do cérebro… O bocejar é ainda associado ao aborrecimento, ao acordar e ao adormecer… para além de ter fama de ser contagioso… mais, não só é contagioso para os seres humanos, mas como para qualquer outro animal social com a capacidade de se auto-reconhecer quando confrontado com a sua imagem num espelho…

A ligação entre o bocejar e o ritmo de acordar e adormecer, apesar de parecer óbvia, foi já testada cientificamente. Num artigo publicado este ano um cientista confirma que não só bocejar é mais frequente de manhã cedo e ao fim do dia, como também em pessoas mais “nocturnas”.

O facto de ser contagioso é talvez a questão mais interessante relativamente ao bocejar… Vários cientistas demonstraram que bocejar é contagioso em chimpanzés e macacos, mas que curiosamente os chimpanzés bebés e bebés humanos pequenos não mostram qualquer resposta… Parece que crianças menores do que 5 anos não são sensíveis ao efeito contagiante do bocejar tal como é sentido em pessoas mais velhas… Isto pode estar relacionado com o facto de bocejar parecer estar associado com certas características tais como auto-consciência ou empatia.

Mas porque bocejamos? Existem várias teorias, mas durante a maior parte do século XX acreditava-se que o bocejar funcionava como um mecanismo para equilibrar os níveis de oxigénio e de dióxido de carbono no organismo… Um artigo científico publicado este ano no Evolutionary Psychology Journal, no entanto, sugere uma teoria alternativa, defendendo que o bocejar não é mais do que um mecanismo de termoregulação do cérebro, ou seja, um mecanismo que impede que o cérebro aqueça demasiado… Neste estudo, um vídeo de pessoas a bocejar foi mostrado a vários indivíduos… Curiosamente, apenas os indivíduos que respiravam pela boca mostraram um bocejar contagioso. Os indivíduos aos quais foi pedido que respirassem pelo nariz não bocejaram… O respirar nasal está associado ao controlo da temperatura cerebral. Para além disso, indivíduos nos quais foi colocada uma compressa molhada na cabeça bocejaram significativamente menos do que sujeitos sem nenhuma compressa, ou que uma compressa aquecida… Foi apartir destes resultados que os autores deste artigo sugeriram esta nova teoria- de que o bocejar ajuda a arrefecer o cérebro através do inspirar de ar frio, que arrefece a artéria vertebral e transporta sangue arrefecido para o cérebro… Esta teoria permite também algumas previsões que podem ser testadas… Por exemplo, se a temperatura ambiente se aproxima da temperatura corporal ou a ultrapassa, então o bocejar deve diminuir… isto porque não faz sentido estar a inspirar ar quente que tornaria o cérebro ainda mais quente! Portanto, se vir alguém bocejar, pode ser uma indicação de que é altura de mudar a temperatura do ar condicionado!

Para finalizar gostaria de sublinhar que este programa foi baseado no texto ‘yawning makes you cool’ por Menelaos Symeonides do blog www.theyorf.blogspot.com

Selecção de embriões

O conceito de selecção de embriões é fácil de entender. Após fertilização in vitro vários embriões são produzidos. Pelo menos um desses embriões tem de ser implantado no útero materno para que um bebé nasça (obviamente). A questão é- que embrião escolher? Claro que podíamos escolher um embrião ao calhas, mas não seria útil escolher o melhor dos embriões, ou pelo menos um embrião que não possuísse alguma das doenças genéticas mais perigosas? Tal escolha seria muito útil, principalmente em famílias em que o risco de uma nova criança possuir um gene causador de uma doença problemática, por exemplo fibrose cística, é bastante grande…

O procedimento é possível… mas será ético? Podemos abordar as questões éticas sob várias perspectivas…

Em primeiro lugar existe toda a importante questão: Será ético seleccionar uma criança em detrimento de outra? Certo, talvez estejamos a condenar uma das potenciais crianças à morte, mas tendo em conta que apenas uma criança irá nascer, não será mais positivo garantir que essa criança não sofra de doenças com graves consequências para a sua sobrevivência, ajudando assim não só a criança como também toda a família? Ultrapassando toda a questão sobre onde começa uma vida, seleccionar embriões sem doenças perigosas parece ser considerado positivo por todos… Mas é claro que esta tecnologia pode ser utilizada para outros propósitos…

Muitas crianças com várias doenças morrem por inexistência de um dador compatível… A opção para muitos pais é conseguir ter um outro filho com informação genética compatível, cujas células, nomeadamente as células estaminais do cordão umbilical, possam ser usadas para transplante… Muitos vezes os resultados são negativos e nenhuma criança é nascida a tempo de salvar o irmão ou irmã doente. Uma opção bastante viável é a selecção de embriões compatíveis à criança doente… No entanto isto involve algumas questões… quais as consequências psicólogicas para uma criança que sabe que apenas foi criada para salvar um irmão? É certo que a intenção é boa, mas serão estas crianças vistas como fonte de peças sobreselentes? Por exemplo, se a criança doente precisa de um rim, será ético sujeitar o irmão saudável a tratamentos algumas vezes invasivos e perigosos apenas para salvar outra criança?

Existem também outras questões… E se por exemplo em vez de seleccionar embriões sem certas características estivermos a selecionar embriões com certas características que consideramos favoráveis? É aqui que entra o medo de que a selecção de embriões possa ser usada para criar ‘designer babies’, bebés digamos perfeitos, selecionados não por não terem certas doenças mas por terem certas características desejáveis… É até possível imaginar pais escolherem bebés por catálogo, escolhendo o sexo, cor dos olhos, QI, etc… note-se, ainda não é possível identificar através dos genes muitas dessas características, mas as possíveis consequências de tal selecção são evidentes, por exemplo, no filme GATTACA, que desde já recomendo que seja visto, devido ao seu interesse, mas não levado demasiado à letra. É certo que hoje em dia existe legislação, pelo menos no Reino Unido, que impede selecção de embriões por razões puramente estéticas… É importante, no entanto, reparar que em Maio deste ano, o organismo regulador em Inglaterra permitiu a selecção de uma doença de nome Congenital Fibrosis of the Extraocular Muscles. Esta doença não é progressiva nem reduz o tempo de vida, e as suas maiores consequências são a perda de visão bifocal e o estrabismo. É certo que esta doença genética não tem cura, e as operações são dolorosas e de poucos resultados… mas será correcto rejeitar embriões apenas devido a algo que possa ser considerado apenas como estético? Onde se deve estabelecer a linha entre o que é aceitável e o que é inaceitável?

E não são. Selecção de embriões baseada em critérios puramente estéticos pode levar a segregação social, pois a mensagem que transmite é a de que certas característics, sejam elas a cor do cabelo ou a obesidade, têm menos valor, e como tal devem devem ser apagadas da população… chegando ao ponto de toda uma discussão se parecer demasiado com os argumentos usados pelos nazis para exterminar certos grupos da população!

Enfim, talvez estejamos a levar a discussão aos seus extremos! No entanto, e antes que tudo seja permitido, é importante analisar com cuidado aquilo que deve ou não ser permitido… e qual o modo de utilizar esta tecnologia para permitir crianças mais saudáveis e felizes, e não a criação de uma sociedade ainda mais discriminatória…

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Terapia Genética

O século XXI é o século da genética. Nos últimos anos, desde a descoberta da estrutura do DNA até ao sequenciar do genoma humano, o nosso entendimento dos seres vivos e de nós próprios tem vindo a crescer. De tal modo que novas técnicas a serem desenvolvidas neste momento prometem conseguir mais do que talvez pensássemos ser possível…

Muitas das características dos seres vivos e de nós seres humanos são determinadas geneticamente. Desde a cor dos cabelos até doenças problemáticas. Pois bem, acontece que é agora possível fazer alguma coisa em relação a isso! Das várias opções, o programa desta e da próxima semana vão focar duas opções para reduzir os efeitos de doenças genéticas- através da terapia genética e da selecção de embriões.

Mas falando da terapia genética… A terapia genética nada tem a ver com levar os genes ao psicólogo, mas sim de descobrir maneira de mudar os nossos genes… sim, ouviu bem, de mudar os genes! Algumas doenças genéticas são caracterizadas por um grande número de genes, por exemplo alguns tipos de cancro, e a maior parte deles desconhecidos! Uma doença genética deste tipo é impossível de resolver pela terapia genética. Outras doenças, no entanto, são bastante mais simples no sentido de que são determinadas por apenas um gene, ou pelo menos existe um gene que é responsável pela forma mais perigosa da doença. O que os cientistas querem fazer é muito simples, pelo menos em teoria: criar um gene bom sinteticamente e substituir o gene errado no paciente. É claro que a história é muito mais complicada…

Criar um pedaço de DNA com o gene bom é a parte mais fácil. Hoje em dia a sequência da maior parte desses genes é conhecida, e existem aparelhos com a capacidade de sintetizar DNA com a sequência que quisermos. Este DNA é depois inserido num pedaço de DNA circular a que se dá o nome de plasmídeo. Os plasmídeos têm uma enorme variedade de aplicações, e neste caso garantem estabilidade ao DNA e tornam o seu manuseamento mais fácil. Mas como fazer chegar o gene bom até às células? Bem, em primeiro lugar é importante perceber que o objectivo não é fazer chegar o gene a todas as células do organismo, mas apenas a parte daquelas em que a doença se manifesta, numa percentagem suficientemente alta para reduzir os sintomas. Em segundo lugar apesar de simplesmente injectar o DNA puder ser uma opção, a técnica de introdução mais utilizada são os vírus… sim, sim, ouviu bem, usar vírus! Mas atenção, os vírus são modificados de tal modo a que em teoria não causem infecções perigosas nos pacientes. Mas o maior problema nem é esse. Existem vários problemas associados aos diferentes tipos de vectores que podem ser utilizados para a introdução dos genes, desde a incapacidade do gene ser expresso por longos períodos de tempo, e ter efectivamente resultados, até ao perigo de provocar reacções imunitárias… e que não se pense que estes são apenas perigos teóricos! Em 1999, Jesse Gelsinger, um jovem americano de 18 anos submeteu-se a um tratamento experimental para uma doença genética no fígado bastante complicada. Em algumas horas Jesse desenvolveu uma febre que se pensou ser normal, mas em menos de um dia entro em coma e acabou por morrer. Escusado será dizer que todos os testes para a cura dessa doença por terapia genética ficaram imediatamente suspensos.

No entanto, existem algumas doenças para as quais os testes continuam. A imunodeficiência severa combinada é uma doença genética que impede o organismo de produzir anticorpos. Os pacientes são incapazes de se proteger de qualquer tipo de invasão por bactérias ou vírus, e como tal têm de viver num ambiente esterilizado. Não é pois por acaso que estas crianças (já que raramente sobrevivem até à idade adulta) são conhecidas como crianças bolha. Alguns testes foram realizados, e em 2002 de 14 crianças bolha sujeitas a este tratamento, 10 ficaram curadas da doença. Infelizmente, 2 das 10 crianças desenvolveram leucemia. Isto porque o objectivo ideal é que o gene bom que introduzimos seja transportado não só para dentro da célula mas que seja também inserido no genoma da célula, de modo a ter efeitos mais duradoiros. O que parece ter acontecido nestas duas crianças foi que o gene bom foi introduzido num lugar menos bom, activando a expressão de um gene associado ao cancro. Uma das crianças acabou mesmo por morrer. Em Janeiro de 2005 os testes foram retomados, mas infelizmente outra das 10 crianças desenvolveu também um cancro, pelo que futura investigação parece estar temporariamente suspensa.

Uma outra doença para a qual a terapia genética está em fase de teste em humanos é a fibrose cística. Esta doença, uma das mais comuns doenças genéticas que causam redução do tempo de vida, é causada por um canal de cloro que não funciona bem, causando a problemas na produção de muitos dos mucos do organismo. A consequência mais comum é a produção de um muco demasiado espesso nos pulmões, levando à acumulação de bactérias e o desenvolvimento de doenças respiratórias… Os tratamentos já começaram, mas os resultados até ao momento não têm sido promissores… Uma outra doença em fase de teste é a distrofia muscular progressiva…

A terapia genética é uma opção… mas e se fosse possível impedir que crianças com estas doenças nascessem? Não estou a falar de aborto nem de assassínio, mas imagine que a sua família tem um historial de uma certa doença… E se fosse possível, através da reprodução in vitro obter um número de embriões e seleccionar para implantação apenas aquele em que a doença não existisse? Pois bem, a selecção de embriões será o tema da próxima semana!

sexta-feira, 1 de junho de 2007

Memória e esquecimento


Agora que os exames nacionais se aproximam, os alunos do secundário começam a apreciar o valor da memória no nosso chamado ‘sistema de ensino’, em que capacidade de memorizar e conhecimento são considerados sinónimos… É, no entanto, óbvia a importância da memorização em qualquer tipo de aprendizagem, desde conseguir mover-se numa sala sem bater contra os móveis até ser capaz de memorizar o equivalente a três anos de liceu. Memória implica tanto ser capaz de guardar como utilizar essa informação…

No entanto, nem toda a informação que nos passa pela frente é acumulada! De facto, existem três tipos de memória, que funcionam como um sistema de filtragem que asseguram que apenas informação que é mesmo necessária é acumulada.

O primeiro nível de memória a seguir à memória imediata (que simplesmente nos ajuda a ter uma noção de espaço e de presente) é a chamada memória de curto prazo. Esta memória permite-nos guardar informação durante alguns segundos até minutos. É a memória de curto prazo que nos permite memorizar um número de telefone até o guardarmos na memória do telemóvel. Lembramo-nos por algum tempo, e rapidamente esquecemos outravez. Este tipo de memória é também importante numa actividade sequenciada, por exemplo se estamos à procura das chaves do carro- permite-nos procurar pela sala pois memorizamos, por um curto período de tempo, os lugares em que já procurámos.

Se a informação que estamos a receber é mais importante do que ‘não procurar debaixo do sofá’, então a repetição da informação ou de uma acção pode levar a que esta seja transferida para níveis de acumulação de memória superiores. O tipo de armazenamento mais duradoiro é a chamada memória de longo prazo. Este é um tipo de memória mais permanente, onde podemos guardar informações por um período variável, desde dias até meses, anos ou mesmo uma vida inteira! Tal como a memória de curto prazo, a memória de longo prazo precisa de repetição para ser estabelecida… mas não para ser mantida.

A capacidade dos diferente tipos de memória varia. O limite da memória de curto prazo é normalmente analisado através da capacidade de indivíduos repetirem tantos números quanto possíveis depois de ouvirem uma sucessão aleatória. Normalmente somos capazes apenas de repetir entre 7 a 9 digitos, mais ou menos o equivalente a um número de telefone! No entanto, a nossa capacidade de memorizar informação aumenta extremamente se em vez de aleatória a informação faz algum sentido! Por exemplo, se pedirmos a um jogador professional de xadrez e uma pessoa normal para olharem brevemente para o tabuleiro de um jogo e pedirmos para reproduzirem o que observaram: o jogador professional é capaz de memorizar muitas mais posições- isto porque o seu conhecimento das relações entre as peças e o modo como o jogo funciona é maior. Portanto a nossa capacidade de acumular informação a curto prazo depende bastante noutras informações que já tenhamos acumulado. Isto é provado por uma continuação da experiência anterior: se o jogador professional e o outro indivíduo têm de observar e representar não um tabuleiro em que um jogo esteja a decorrer mas antes um tabuleiro em que as peças estejam distribuídas ao calhas, o jogador de xadrez já não se encontra em vantagem- numa distribuição aleatória de peças, o seu conhecimento anterior não lhe dá nenhuma vantagem.

Finalmente é importante perceber que tão importante como conseguir memorizar é conseguir esquecer. Importante em aprendizagem é a capacidade de seleccionar a informação que é importante, e apagar a que não é. A importância do esquecimento foi analisada em raros indivíduos que apresentam dificuldade em apagar informação. O caso mais conhecido é o estudado pelo psicólogo russo A. Luria, que descreve os seus encontros com o paciente a que chamou de S. Depois de Luria repetir sucessões de números ou palavras, S era capaz de as repetir sem engano, mesmo listas de números que chegavam a 70 elementos! A sua capacidade de memorizar informação de todos os tipos era impressionante! S não era, no entanto, um génio, e a sua incapacidade de esquecer também lhe trazia problemas. Por exemplo, a capacidade de ler um artigo de um jornal e explicar a ideia geral era bastante reduzida. Para uma pessoa normal esta actividade é bastante simples- involve ler o texto rapidamente e decidir quais as partes mais importantes e esquecer ou ignorar as restantes. S, no entanto, tendia a memorizar tudo, e cada palavra parecia criar novas imagens na sua mente que dificultavam o procedimento. Imagens no jornal também dificultavam a actividade- S não as conseguia ignorar e perdia-se numa sucessão de memórias, de tal modo que a análise de uma simples passagem, ou mesmo de uma frase, se tornava impossível!

É claro que excesso de esquecimento pode levar a amnésia, o outro reverso da medalha, mas parece ser óbvio a importância do esquecimento para uma aprendizagem e vida normal…. Que isto não sirva, no entanto, de desculpa para se esquecer de dar os parabéns a alguém!

quarta-feira, 23 de maio de 2007

Animais fluorescentes? usando GFP


O interesse pela fluorescência não é exclusivo de criancas ou daqueles com uma mente mais inventiva. Mais do que um brinquedo, a fluorescência pode ser de grande utilidade para a ciência.

De facto, uma das ferramentas científicas mais úteis desenvolvidas nos ultimos anos foi a chamada GFP (green fluorescent protein) ou em português, a proteína verde fluorescente.

A história da GFP começou em 1961 quando os cientistas Osamu Shimomura and Frank Johnson trabalhavam na alforreca Aequorea victoria. Basicamente estes dois cientistas descobriram que existia uma proteína nesta alforreca que utilizava sinais luminosos dependentes em cálcio na produção da cor verde fluorescente característica da espécie. Para além de fazer as alforrecas brilhar com uma cor engraçada, a utilidade imediata desta proteína não foi imediatamente compreendida. Foi só bastante mais tarde, após 1992, que a GFP começou a ter uma função essencial em ciência...

A GFP é utilizada em ciência basicamente para indicar se um gene introduzido num organismo foi transferido para o núcleo da nova célula e está a ser expresso normalmente. Vejamos: Como vimos na semana passada, no programa sobre plantas transgénicas, muitas vezes os cientistas estão interessados em introduzir genes em novas células ou organismos. Mas como saber se o novo gene foi introduzido correctamente, e que a proteína correspondente esta a ser produzida? Bem basicamente os cientistas introduzem o gene de interesse e o gene de GFP. Se o gene de interesse tiver sido introduzido com sucesso, então também GFP será introduzido com sucesso, e as células ou organismo de introdução irá apresentar uma característica cor verde fluorescente...

E não só! É também possível associar a nossa proteína de interesse com GFP e monitorizar o seu movimento dentro de uma célula viva!

E a grande vantagem da GFP é que não só é fluorescente e pequena, como não possui quaisquer efeitos negativos na célula de introdução...


Mas agora passando a questões mais interessantes... Será que é possível utilizar GFP na criação de algo mais interessante, para além das suas óbvias vantagens para cientistas e investigadores?

Bem, acontece que já alguém teve ideias semelhantes. Desde que a GFP comecou a ser utilizada rutineiramente em ciencia que uma lista interessante de organismos fluorescentes tem sido criada... ou dizendo de outra maneira, os cientistas criaram animais que brilham no escuro!

O processo não é doloroso para os animais. Implica apenas a injecção do gene para a produção de GFP em ovos fertilizados... O nível de sucesso é bastante reduzido (menos de 1% de sucesso em 1999), mas ainda assim alguns animais fluorescentes já foram criados. E diga-se de passagem- estes animais são mesmo fixes! A lista de animais fluorescentes inclui ratos, porcos e até um coelhinho verde fluorescente baptizado de Alba! Até existe um macaco parcialmente fluorescente, chamado ANDi.

Mais do que fofinhos, estes animais podem ser úteis no estudo de doenças como Alzheimer’s ou cancro, se a GFP for modificada para ser expressa apenas em determinados tipos de células de interesse. É claro que a baixa percentagem de sucesso e o custo de produção faz com que o seu uso, para além de chamar a atenção dos media, ainda seja reduzido...

Finalmente é preciso dizer que não só animais são capazes de fluorescer hoje em dia. À alguns anos atrás, por exemplo, um grupo de alunos em pos-graduação na universidade Hertfordshire propuseram a criação de uma árvore de natal capaz de brilhar no escuro! Já imaginou? Acabavam-se logo os problemas com luzes de natal fundidas! E com a utilização de novas cores em proteínas fluorescentes descobertas nos últimos anos em vários tipos de coral, a criação de uma árvore de natal multicolorida pode não estar tão longe assim!



sexta-feira, 18 de maio de 2007

Arroz dourado

Plantas geneticamente modificadas (ou GM crops em inglês- genetically modified crops) não são mais do que plantas às quais foi adicionado um ou mais genes específicos, de modo a adquirirem alguma nova característica de interesse.

O potencial destas plantas é bastante vasto- em princípio deveria ser possível retirar qualquer gene de qualquer organismo e introduzi-lo. A sua utilidade é bastante grande, e existem já vários tipos de plantas geneticamente modificados em produção. A maior parte dos 102 millhões de hectares de plantas geneticamente modificadas todos os anos é utilizada para produzir soja com tolerância a herbicidas. Herbicidas, como se sabe, são substâncias químicas utilizadas pelos produtores agrícolas na erradicação de ervas daninhas e espécies vegetais que invadem os campos de cultivo. O problema do uso de herbicidas é que geralmente atacam também a produção, com consequências negativas. De modo a reduzir estes efeitos, foram introduzidas plantas, por exemplo soja, com um gene que lhes permite resistir ao efeito do herbicida- deste modo as plantas infestantes morrem e a soja cresce alegremente.

Outro tipo bastante badalado de plantas geneticamente modificadas é a da produção de espécies resistentes a pestes como insectos. Estas plantas, nomeadamente milho, são chamadas de Bt porque possuem um gene que normalmente se encontra presente num tipo de bactéria chamado Bacillus thurgiensis. Basicamente o milho Bt passa a produzir esta proteína. Quando as larvas destruidoras se alimentam da planta, a proteína torna-se tóxica e causa a sua morte.

Existem mais tipos de plantas geneticamente modificadas, com muitas mais utilidades, e a lista de argumentos a favor e contra o seu uso é extensa. No entanto não é publicidade a nenhuma das estas causas que quero fazer. Mais interessante é falar acerca de um tipo específico de planta geneticamente modificada chamada de ‘arroz dourado’.

Cerca de 3 biliões de pessoas em todo o mundo dependem do arroz como mais importante fonte de alimento. O arroz é uma boa fonte de energia, mas tem algumas deficiências, nomeadamente em vitamina A. Vitamina A é um dos componentes essenciais numa dieta equilibrada. Cerca de 100 a 140 millhões de crianças no mundo apresentam deficiências em vitamina A, causando cegueira a mais de 500,000 por ano, enfraquecendo o sistema imunitário e promovendo outras doenças como diarreia e sarampo. Mais de 1 milhão de mortes por ano estão relacionadas com deficiência de vitamina A.

Que fazer para resolver este problema? Bem, cientistas propuseram-se a criar um tipo de arroz que possuísse β-caroteno, um precursor de vitamina A. Através da introdução de uma enzima presente no milho, outra do narciso e uma terceira de uma bactéria, foi possível criar o chamado ‘arroz dourado’. Esta designação deve-se à sua cor amarelada. De facto, β-caroteno é um componente também presente nas cenouras, dando-lhes a sua característica cor laranja. Curiosamente, segundo o site do Golden Rice Project, as cenouras já foram brancas… tornando-se laranjas através da selecção ao longo de gerações por um jardineiro holandês (visto que a cor da casa real da Holanda é o laranja!).

Claro que a criação de um tipo de planta como este, especialmente se especificamente para países em desenvolvimento, cria algumas questões.

A primeira é obviamente se o arroz dourado possui efectivamente β-caroteno suficiente para satisfazer as nossas necessidades diárias. As primeiras versões de arroz dourado eram efectivamente um pouco inúteis, sendo preciso consumir cerca de 9 kg de arroz por dia! O Golden Rice II, no entanto, é suposto fornecer a dose diária de vitamina A em apenas 70 g de arroz, uma quantidade muito mais lógica!

Outra questão é saber quem é o dono deste produto, e como chega ele àqueles que efectivamente dele precisam. De acordo com o site do Golden Rice Project, os inventores desta planta, Professores Peter Beyer e Ingo Portrykus, assim como a empresa produtora Syngenta doaram o produto para uso em causas humanitárias totalmente de graça… De acordo com este site o objectivo é que num futuro próximo seja possível fazer chegar este novo produto aos pequenos agricultores de países em que o arroz é uma importante parte da dieta, por exemplo à Índia, através de associações humanitárias e dos governos, sem qualquer custos extras…

Bem, talvez a companhia Syngenta tenha mesmo boas intenções (de qualquer forma não existe um mercado para o arroz dourado no mundo desenvolvido, já que o nosso problema é mais excesso de nutrientes do que falta deles). No entanto será preciso assegurar que este produto chega de facto àqueles que dele precisam, e que não seja rejeitado pelas populações, não só devido ao facto de ser um produto trans-génico, mas também devido à sua cor diferente…

De qualquer maneira é preciso admitir que uma tecnologia que não cria vantagens para os grandes produtores, que complementa os tradicionais tipos de produção agrícola, e que é capaz de resolver o problema de deficiência de vitamina A sem requerer outros mecanismos de extracção e tratamento, até que pode ter as suas vantagens…

Mais informações sobre:
arroz dourado
http://www.goldenrice.org/
deficiência de vitamina A (OMS):
http://www.who.int/nutrition/topics/vad/en/index.html

quarta-feira, 16 de maio de 2007

Diabetes

Diabetes é uma doença importante mas cujas causas e tipos são muitas vezes desconhecidas. O público em geral na maior parte das vezes a única coisa que sabe é que a cura para os diabetes implica injecções de insulina com frequência… e nem essa informação é totalmente correcta!

Pois bem, começando do princípio. Depois de tomarmos uma refeição, os alimentos são digeridos no estômago e intestino, e degradados nos seus componentes mais simples. Esses componentes são absorvidos pela parede do intestino e transportados pelo sangue para o fígado e eventualmente para todas as células do corpo que deles precisam. Desses componentes é preciso realçar a importância da glucose, um simples açúcar que funciona como um dos principais combustíveis do nosso organismo. A sua oxidação é responsável pela produção da maior parte da energia que o nosso organismo utiliza. Para podermos utilizar glucose, as células têm de ser capazes de transportar glucose para o seu interior e activar os respectivos mecanismos internos. Na ajuda desse processo existe uma hormona chamada insulina que têm um papel essencial. A insulina é uma hormona produzida no pâncreas num conjunto de células chamadas células Beta. Estas células produzem insulina em resposta aos níveis de glucose no sangue. Assim, se depois de uma refeição rica em açúcares o nível de glucose no sangue é bastante elevado, o nível de insulina libertado aumenta também, facilitando a internalização de glucose pelas células e a sua utilização. Deste modo a quantidade de glucose decresce e ao fim de 2 horas já regressou aos seus níveis normais.

Os diabetes desenvolvem-se quando existem problemas neste sistema de regulação, de tal modo que os níveis de glucose no sangue são excessivamente altos. Numa pessoa normal os níveis de glucose são geralmente de 5 mMoles, chegando a atingir à volta de 8mMol após uma refeição. Num diabético, os níveis de glucose são sempre acima dos 10-13 mMol, e mantém-se muito acima deste valor várias horas após uma refeição. O valor de glucose de um diabético no sangue pode chegar aos 30 mMol.

No entanto existem dois tipos de diabetes. Os diabetes de tipo 1 são talvez os mais conhecidos. Este tipo de diabete é caracterizado por se manifestar geralmente em crianças e jovens. O problema neste caso é a inexistência de insulina no sangue. As células Beta do pâncreas, por alguma razão, muitas vezes genética, são incapazes de produzir insulina, pelo que a glucose no sangue é incapaz de entrar nas células que dela precisam. É por isso que o diabetes é muitas vezes descrita como uma situação de fome no meio da abundância- o açúcar que as células precisam está no sangue, disponível. Ainda assim as células sofrem e morrem porque não conseguem ter acesso a essa fonte de energia. Por isso, alguns dos sintomas característicos de diabetes de tipo 1 são a fome excessiva, rápida perda de peso e fadiga. Outros sintomas incluem excessiva excreção de urina, sede e mudanças de visão. Este tipo de diabetes é controlável através de injecções controladas de insulina com frequência e uma dieta pobre em açúcar. Não se deve no entanto pensar que diabéticos são o equivalente a consumidores de droga, toxicodependentes de insulina! A insulina não cria habituação- os diabéticos estão dependentes da insulina apenas porque é literalmente essencial à sua sobrevivência!

Os diabetes de tipo 2 manifestam-se geralmente mais tarde, ainda que com o aumento da obesidade e de problemas alimentares tem sido diagnosticada cada vez mais cedo. Os diabetes de tipo 2 são o tipo mais comum de diabetes, compreendendo cerca de 90% de todos os casos de diabetes. Os sintomas são semelhantes aos de diabetes de tipo 1, mas geralmente mais leves, de tal modo que se a doença for detectada cedo é possível reverter o processo. No entanto, a situação metabólica nos diabetes de tipo 2 são ligeiramente diferentes- as células do pâncreas continuam a produzir insulina, mas as células do corpo simplesmente não respondem à insulina, de tal modo que mesmo com insulina presente já não são capazes de internalizar a glucose ou activar os processos para a sua utilização. Uma das explicações para essa des-sensitização pode estar no facto de uma dieta muito rica em açúcar fazer com que hajam picos de libertação de insulina com demasiada influência.

A diabetes do tipo 2 pode ser controlada de modo mais simples do que diabetes 1. Desde que o diabético altere a sua dieta radicalmente de acordo com as instruções do médico e pratique exercício, situações problemáticas podem ser evitadas.


Não se pense, no entanto, que os diabetes são uma doença menor. As consequências de diabetes não tratadas incluem cegueira, danificação dos nervos, redução da circulação sanguínea, o que pode levar a úlceras nos pés, e mesmo amputação de membros, problemas renais (10-20% dos diabetes morre porque os rins deixam de funcionar). 50% dos diabéticos morre ainda de ataques de coração ou de problemas associados a este órgão. Em geral, o risco de morrer é em média duas vezes maior num diabético no que num indivíduo saudável.

Mas que podemos nós fazer para evitar esta doença? Para evitar diabetes de tipo 1 talvez não seja assim tão fácil, já que tende a surgir de repente, e as vezes causado por exemplo por infecções virais. Diabetes 2, no entanto, a forma mais comum da doença é evitável através de uma alimentação saudável e de exercício físico. Por outro lado, uma simples picada no dedo após uma noite sem comer é o suficiente para testar a doença.

Tendo em conta que a Organização mundial de saúde estima que cerca de mais de 1 milhão de pessoas morreram em 2005 de diabetes, uma pequena mudança de dieta e exercício valem a pena…
Mais informações sobre diabetes:
Associação Protectora dos Diabéticos http://www.apdp.pt/default.asp (em português)

Antibióticos super-resistentes...


domingo, 13 de maio de 2007

Menopausa e a importância das avós...



A menopausa, mais do que um período complicado na vida de uma mulher é também um enigma evolucionário… de um ponto de vista evolutivo é geralmente esperado que uma determinada característica evolua se contribuir de algum modo para o sucesso reprodutivo ou sobrevivência do indivíduo. E isto por causa da ‘teoria do gene’ sobre a qual já falámos anteriormente. Se um gene contribui para um maior número de filhos então garante uma maior numero de cópias na geração seguinte, e consequentemente mais indivíduos com essa característica… Portanto se observamos alguma característica presente numa espécie, é normal que tentemos perceber de que modo essa característica contribuiu ao longo da evolução para uma maior sobrevivência ou número de filhos. Mas como explicar então algo como a menopausa? A menopausa é por definição um período a partir do qual a mulher deixa de ser menstruada e é portanto incapaz de produzir mais filhos. Até aqui tudo bem. Tendo em conta que o número total de óocitos é determinado e produzido antes do nascimento é normal que a um determinado ponto uma mulher se torne infértil (por oposição aos homens, que produzem esperma ao longo de toda a vida). A menopausa também ocorre noutros animais, de um modo mais abrupto ou gradual. No entanto, apenas em humanos e baleias e outros cetáceos a menopausa ocorre quando existe ainda em média 1/3 de vida para viver.

Como explicar então que a menopausa ocorra quando ainda existe 1/3 de vida que poderia ser ‘utilizado’ na produção de mais filhos? Talvez seja importante aqui fazer um aparte: não estou a tentar dizer que o objectivo da vida de uma mulher é produzir mais e mais filhos, mas é óbvio que na natureza (viva e não viva, e aqui refiro-me aos vírus) o sistema está organizado para sobreviver e reproduzir. Se a nossa recente história enquanto espécie alterou as regras um pouco isso é outra história. É um facto, no entanto, que as mesmas regras se aplicaram ao longo da nossa evolução…

Mas voltando à menopausa. A menopausa ocorre, a mulher vive mais 1/3 da sua vida e não produz mais filhos… Isto pode significar duas coisas: ou a menopausa ocorre demasiado cedo, ou somos nós que vivemos mais tempo do que seria suposto depois da menopausa ocorrer. É pouco provável que a menopausa esteja a ocorrer demasiado cedo, pois a evolução poderia simplesmente ter aumentado o número de óocitos fazendo com que a menopausa ocorresse mais tarde na vida de uma mulher. É mais provável que a menopausa ocorra porque é de algum modo vantajosa… de facto, a gravidez e nascimento são processos custosos e um investimento numa vida mais longa tem óbvias consequências em termos de quanto pode ser investido na sua própria reprodução. No entanto só porque uma mulher não pode ter filhos não significa que não possa contribuir para a transmissão dos seus genes! É aqui que entra a chamada ‘Grandmother hypothesis’, ou a hipótese da avó. Basicamente as avós são capazes de aumentar a sua contribuição genética para as gerações futuras cuidando dos netos, já que estes partilham pelo em média ¼ dos seus genes. Essa ajuda poderia ser dada através do cuidado directo das crianças ou pela recolha de alimentos ou mesmo auxílio nas árduas tarefas domésticas, dando mais tempo livre às mães…

E isto não é uma situação que tenha ocorrido no passado e seja obsoleta agora. Um recente estudo em populações canadianas e finlandesas têm mostrado que uma avó vivendo perto ou na casa das suas filhas tem um efeito positivo no número de netos que sobrevive até uma idade independente.
Note-se, no entanto, que é apenas referido o efeito positivo das avós no esforço reprodutivo das suas filhas… Mas não poderiam as avós ajudar filhas e filhos? Alguns autores sugerem que tal talvez não fosse favorecido ao longo da evolução devido ao facto de uma avó nunca poder ter a certeza completa que os netos são realmente seus (afinal as noras nem sempre são fiéis aos seus maridos). E isto de facto observa-se em populações reais. Num estudo realizado na Etiópia cientistas observara, que as avós mais facilmente deixavam a sua aldeia para visitar e ajudar uma filha do que um filho…

Enfim, isto pode levar algumas mães a pensar duas vezes antes de decidir morar longe da sua mãe…


The two original papers:
- Gibson M., Mace R. (2005). Helpful grandmothers in rural Ethiopia: A study of the effects of kin on child survival and growth, Evolution and Human Behavior, 26. pp 469-482
- Lahdenperä M., Lummaa V., Helle S., Tremblay M., Russel A. (2004). Fitness benefits of prolonged post-reproductive lifespan in women, Nature, 428 (6979). pp 178-181

sexta-feira, 4 de maio de 2007

A Varíola e Catarina da Rússia


A varíola é uma doença causada por um virus que muitas vezes no passado foi confundido com a varicela devido à semelhança de sintomas. A varíola começa com sintomas semelhantes aos da gripe. Dois ou três dias mais tarde a febre decresce e o paciente sente-se melhor, mas as postulas caracteristicas da doenca comecam a aparecer...

Desde a sua origem, provavelmente à cerca de 3,000 anos na região do Egipto ou India, até 1980 quando foi considerada erradicada, a variola foi uma das mais devastadoras doenças, e repetidas epidemias foram responsáveis pela morte de populações inteiras... De facto, em algumas antigas culturas o efeito devastador da varíola, principalmente em crianças, fez com que nenhum recém nascido com a doenca pudesse ser registado e um nome atribuído até que provasse ser capaz de sobreviver...

E não era uma doença que afectasse apenas os pobres e desfavorecidos. A varíola foi responsável pela morte de importantes personalidades, incluindo a rainha Maria II de Inglaterra, o Czar Pedro II da Russia e o rei Luis XV de Franca...
E quando a doençaa não causava a morte dos pacientes podia ter outras consequências negativas, a mais importante das quais a cegueira...

É pois normal que alguém tão importante como a Imperatriz Catarina da Rússia se preocupasse com a doença, não só em termos da sua saúde e da do seu filho, como a da populacao da Rússia, onde uma recente epidemia havia morto 20,000 russos na Sibéria. E de qualquer forma uma das suas ambições era a modernização da medicina russa, e uma doença que causava 1 em cada 10 mortes no continente europeu era um bom começo. O problema é que a medicina moderna no país era praticamente inexistente. Solução? Obter ajuda de Inglaterra, onde a inoculação do vírus, em prática desde 1720 com grande sucesso, e com uma fatalidade de apenas 1%...

O médico chamado à Russia era o Dr.Dimsdale, um dos mais bem sucedidos e ricos inoculadores do pais, e que portanto não precisava de dinheiro, nem sucesso, e muito menos de complicações como uma viagem horrorosa ao longo do continente até São Petesburgo.

Os russos conseguiram, no entanto, ser bastante persuasivos, especialmente monetáriamente, e portanto a 28 de Julho de 1768 Dismdale e o seu filho partiram para a Rússia, apenas para descobrir a chegada que a sua tarefa essencial era a inoculação da Imperatriz e do seu filho primogénito. Uma notícia como esta poderia ter assustado de morte qualquer médico... Afinal, quais as consequências se as coisas corressem mal? E isto num país em que inoculação era considerada algo demoníaco, e em que se acreditava que os pacientes dos quais a substância a inocular era removida morriam com toda a certeza...

Bem, Dimsdale não deixou as coisas ao acaso... Em primeiro lugar testou a inoculação em menos reais vítimas. Estas tentativas tiveram resultados desanimadores. Basicamente ninguém desenvolvia as postulas características da doença (sinal de que o organismo estava a reagir ao virus e a desenvolver defesas).

Mas a imperatriz não se deixou demover, e a um domingo, 12 de Outubro, foi inoculada... numa semana a imperatriz havia desenvolvido as características postulas e a 28 de Outubro estava totalmente recuperada e de volta a corte. Apesar da sua confianca no sucesso da inoculação, Dimsdale não deixou as coisas ao acaso, e diz-se que no dia da operação tinha uma carruagem e cavalos prontos, só para o caso de as coisas correrem mal e uma saida apressada ser necessária...

Mas felizmente tudo correu bem, e inoculações foram feitas por toda a Rússia com grande sucesso. E as coisas também resultaram bem para o Dr Dismdale, que acabou com um título de barao, 10,000 libras de pagamento e um lugar de honra na história da Rússia. O agora barão Dismdale voltou a Inglaterra ainda mais célebre do que antes, e tão rico que deixou a medicina e decidiu abrir um banco...

Finalmente, e para terminar, e interessante notar que a história recente do combate a variola é também caracterizada por bons resultados.Na verdade a varíola é um dos (poucos) casos de sucesso da Organização mundial de saude em termos de erradicação de doenças infecciosas. De facto, a OMS foi capaz de erradicar a varíola em mais ou menos uma década e a doença foi dada como ‘extinta’ em 1980.... de tal modo que a nova geração nem recebeu a vacina para a doença, com consequências óbvias em termos de potencial para ataques terroristas.... mas isso é outra história!

Baseado em ‘From Rússia with trepidation’, New Scientist de 24 de Março

Mais informação sobre a varíola no site da OMS (in english)
http://www.who.int/mediacentre/factsheets/smallpox/en/

quinta-feira, 3 de maio de 2007

quarta-feira, 2 de maio de 2007

Determinação do sexo...

A determinação do sexo na espécie humana é bastante… aborrecida. O sistema é simples: espermatozóides podem ter um cromossoma X ou um cromosoma Y, enquanto que os óvulos apenas cromosomas X. Se o bebé for XX, será uma rapariga, se for XY um rapaz… sem dúvidas e sem possibilidade de troca (fora alguns conhecidos, mas raros, síndromes). A determinação do sexo pelos cromossomas não é específica dos humanos. Muitos usam o mesmo sistema. As galinhas e outros pássaros tem um sistema um pouco diferente – os machos são ZZ e as fêmeas ZW.

O mais interessante é que em alguns animais não são os cromossomas que definem o sexo dos filhos… mas o ambiente. O exemplo mais conhecido é o de muitos répteis, em que a temperatura dos ovos tem um papel determinante. Por exemplo, em algumas tartarugas, se a temperatura dos ovos for acima dos 29º, nascem fêmeas, se for abaixo são machos. Noutros casos, como em alguns crocodilos, uma temperatura intermédia leva a nascerem machos, e temperaturas mais baixas ou mais altas levam a fêmeas. Este sistema é muito prático, pois ajuda a regular a proporção de machos e fêmeas numa população. Claro que aqui vemos já um dos problemas do aquecimento global. A subida de um grau pode ser o suficiente para produzir excesso de um certo sexo…

Mas existem situações ainda mais interessantes… As lagartas marinhas Bonellia viridis, antes de se tornarem adultas, apresentam um fase intermédia, sob a forma de larva. As larvas não têm sexo definido. Na altura de se tornarem adultos, no entanto, tudo depende de quem se encontrar por perto. Na presença de muitas fêmeas diferenciam-se em machos. Se não, transformam-se elas mesmo em fêmeas.

E agora o meu caso favorito- existe uma espécie de peixe dos recifes de coral, Halichoeres melanurus, em que cada macho tende a controlar um harém de fêmeas. Uma experiência realizada em 1994 teve resultados muito curiosos- a um harém de fêmeas foi retirado o macho dominante… qual não foi a surpresa ao verificar que ao fim de 2 a 3 semanas, a maior das fêmeas se havia transformado… num macho. E como se isso não bastasse, quando o macho foi reintroduzido, a fêmea-agora-macho voltou a ser fêmea…

E vai uma pessoa pensar que mudanças de sexo eram uma coisa nova…

Calvin and Hobbes...


sábado, 28 de abril de 2007

Hipotermia e 'paradoxical undressing'

A temperatura do nosso corpo é de geralmente 37ºC, e o estado de hipotermia inicia-se quando a temperatura desce para pelo menos 35ºC. No entanto, o deselvolvimento deste estado pode levar a uma descida de temperatura ainda mais evidente, com simptomas cada vez mais problemáticos. Abaixo dos 30ºC, geralmente entre os 25 e 28ºC a temperatura corporal é tão baixa que o coração pára e a pessoa acaba por morrer.

Como explicar então o caso recorrente de serem encontradas pessoas mortas por hipotermia que aparentemente despiram parte das suas roupas? Isto é muitas vezes associado com casos de violência, como assalto ou violação, mas então porque é que tantas vezes quando estão a ser socorridas as vítimas recusam as mantas de aquecimento? Este fenómeno é chamado de ‘paradoxical undressing’. Esta expressão inglesa resulta da combinação de duas palavras inglesas: undressing, que significa despir, e paradoxical, que obviamente significa paradoxal. Basicamente, indivíduos com hipotermia paradoxalmente comecam a despir-se...

Mas qual a razão para tal comportamento? Bem, é óbvio que uma explicação é difícil de descobrir para os cientistas, ou então não era paradoxal em primeiro lugar! No entanto existe uma teoria que é geralmente aceite...

Quando o estado de hipotermia se inicia, o organismo tenta evitar que pelo menos os órgãos vitais arrefeçam demasiado, e como consequência regula o fluxo de sangue, de tal modo que mais sangue é transportado para a zona central do corpo e reduzindo a chamada circulação periférica. O fenómeno de regulação do fluxo sanguíneo não é exclusivo da hipotermia. Durante a digestão, por exemplo, é normal que o fluxo sanguíneo seja direccionado para os órgãos envolvidos nesta função sem, obviamente, impedir o normal funcionamento do resto do corpo.

No entanto manter o sangue concentrado em certas areas implica fechar ou diminuir a sua circulação para outras áreas do corpo. O processo de contracção dos vasos sanguíneos, impedindo o fluxo de sangue, é chamado de vasoconstrição. A vasoconstrição é possível através da contracção dos músculos lisos que se encontram em torno dos vasos sanguíneos. No entanto este processo exige consumo de energia, fornecida por exemplo pela glucose em circulação.

O processo oposto à vasoconstrição chama-se vasodilatação, e não exige qualquer input the energia- os músculos lisos simplesmente têm de relaxar para o sangue voltar a fluir normalmente.

Durante o desenvolvimento da hipotermia o estado da vitima torna-se cada vez pior- como os vasos periféricos recebem menos circulação, os músculos lisos têm menos combustível disponível, e o cansaço acumula-se. Consequentemente, ao fim de algum tempo os músculos acabam por relaxar, permitindo de novo a circulação do sangue. O fluir do sangue mantido quente noutras zonas do corpo leva a uma sensação de aquecimento. A vítima sente-se quente e por isso começa a tirar as roupas, daí o ‘paradoxical undressing’.

É claro que o despir acaba por ajudar o processo de hipotermia, e a vítima torna-se cada vez mais fria acabando por morrer. Não existe registo de vítimas de hipotermia que tenham sido capazes de sobreviver sem ajuda exterior após terem chegado a este estado.

Outra situação curiosa que ocorre em 20% dos casos letais de hipotermia e o chamado hide-and-die syndrome, ou seja, o sindrome de esconde e morre. Basicamente muitas vítimas de hipotermia que morrem por exemplo, em casas pouco aquecidas, são muitas vezes encontradas debaixo da cama, ou detrás de armários. De facto, existe um caso no Medical Journal of Australia (vol.175, pag 621), que descreve um homem de idade encontrado morto em casa durante o inverno, apenas parcialmente vestido e rodeado de mobília de pernas para o ar. Este comportamento é provavelmente um vestígio de um instinto presente também noutros animais de, basicamente, se as coisas se tornarem más, encontrar algum sítio para se esconder (‘when things get really bad, find somewhere to hide’).

Mais informações em ‘Paradoxical undressing; 21st April 2007, pag 50, New Scientist

sexta-feira, 27 de abril de 2007

Sistema de orientação dos morcegos

Acabei à pouco tempo de ler ‘Drácula’, de Bram Stocker, o que inevitavelmente me fez sonhar algumas noites com morcegos… daqueles que chupam sangue. Claro que existem nesta história várias coisas a clarificar. Em primeiro lugar os famosos morcegos chupadoresde sangue na verdade não chupam sangue nenhum. De um modo ágil e leve são capazes de se alimentar do sangue de vacas, cavalos, porcos e aves, e até ocasionalmente humanos, sem danificar a chamaremos vítima de modo excepcional. Simplesmente causam uma pequena picada com os dentes e removem algum sangue com a língua. Fazem-no de modo tão singelo que um animal pode chegar a passar 30 minutos sem se aperceber que tem um morcego a alimentar-se do seu sangue!

No entanto, hoje não vamos falar de morcegos vampiros. Para além destes existem muitos outros tipos de morcegos com dietas bem diferentes. Existem, por exemplo, morcegos que se alimentam de fruta. Hoje especificamente estes morcegos não nos interessam. Como se alimentam de fruta, caracterizada pelas suas cores atractivas, estes morcegos usam uma visão normal quando procuram comida. Bem mais interessantes são os morcegos insectívoros, ou seja, morcegos que se alimentam de insectos. A característica interessante destes morcegos é a de possuírem um sonar, que lhes permite alimentarem-se de insectos activos apenas à noite. Alimentarem-se de tais insectos é muito bom, pois raros são os outros predadores capazes de explorar estas presas.

O sistema sonar dos morcegos insectívoros é extremamente interessante, especialmente porque pode até parecer que os morcegos sabem engenharia! Por isso o Biocuriosidades de hoje vai falar sobre o sistema de comunicação dos morcegos insectívoros!

De modo a tornar a explicação mais interessante, vou apresentar um conjunto de 4 problemas que os morcegos têm de resolver de modo a serem capazes de caçar à noite. E para cada problema irei apresentar a solução que um engenheiro daria, e a solução que a evolução dos morcegos ao longo de milhar de anos desenvolveu!

O primeiro problema é obviamente a falta de luz. Um engenheiro pode sugerir 3 soluções: produzir luz, caçar de dia (o que não é uma opção para o morcego, já que os insectos de que se alimenta estão disponíveis à noite apenas) ou usar um radar, ou seja, um sistema de navegação alternativo à visão. Os morcegos ficaram-se pela última opção e usam um sistema de radar que é único em animais terrestres (ainda que comum em animais aquáticos como as baleias).

Portanto os morcegos usam ondas sonoras para se orientarem- soltam digamos que um grito e esperam pelo eco para lhes dar informação do que se passa à sua volta. Um important factor é saber a frequência desses sons. O nosso engenheiro sugere uma frequência alta de modo a obter eco de qualidade. O nosso morcego segue a sugestão. Os morcegos emitem sons com uma frequência de 20 000 Hz ou mais. Isto porque a maior parte dos sons no mundo à nossa volta têm uma frequência inferior a 20 000 Hz. Por isso, basicamente, os morcegos vivem num mundo de silêncio excepto para os sons emitidos por si mesmo. Para além disso, cada espécie de morcego irá emitir sons numa frequência característica, de modo a diminuir confusões geradas pelas emissões de outros tipos de morcegos. Esta característica é extremamente útil na identificação de espécies.

A questão seguinte é saber quantas vezes emitir esses sons por cada unidade de tempo. O engenheiro argumenta e muito bem que quanto maior a frequência maior a quantidade de informação obtida sobre o meio. No entanto, a quantidade de energia usada é também maior. Os morcegos resolvem o problema de maneira engenhosa: quando estão simplesmente a movimentar-se e a obter uma visão geral do mundo, emitem sons a cerca de 10 emissões por segundo. Quando estão no acto de caçar, no entanto, as emissões sobem para 200 emissões por segundo, garantindo uma visão detalhada essencial para a captura da presa.

E qual a intensidade do som? O som tem de ser obviamente bastante alto, já que o eco tende a ser 2000 vezes mais fraco do que o som original. Para além disso os morcegos têm ouvidos muito sensíveis, de modo a detectar mesmo os ecos mais fracos. No entanto isto apresenta obviamente um problema- os sons muito altos emitidos podem danificar os ouvidos ultrasensíveis. Um engenheiro sugeriria que o receptor fosse desligado antes do som ser emitido, e é isso que os morcegos fazem. Quando os sons são emitidos, os ouvidos dos morcegos tornam-se menos sensíveis pela contracção automática de um músculo específico no ouvido do morcego.

Mas tudo isto não explica o modo como os morcegos conseguem obter informação acerca do que se passa à sua volta apenas a partir apenas do eco. Na verdade, os morcegos exploram essas ondas sonoras ao máximo. De modo a retirar tanta informação quanto possível. O intervalo de tempo entre a emissão do som e a chegada do eco, por exemplo, informa sobre a distância entre o morcego e a sua presa. O ângulo de chegada do som, por outro lado, é capaz de indicar o tamanho do insecto a ser caçado. Os morcegos utilizam também a diferença de tempo entre a chegada do som a um ouvido e a outro como uma indicação da direcção da presa. Finalmente, a interferência entre o eco no topo e no fundo das orelhas (caracteristicamente longas no caso dos morcegos) pode fornecer informação sobre a elevação relativa entre presa e predador.

Baseado no capítulo 2 ('Good design') do livro 'The Blind Watchmaker' de Richard Dawkins

Pássaros que gritam lobo

Existe uma ideia generalizada de que o Homem e o unico animal realmente vil… afinal, pensamos nós, somos os únicos capazes de nos enganar uns aos outros... Quero dizer, nenhum animal é capaz de mentir, não é?

Acontece que a mentira é mais generalizada no reino animal do que pensamos. Aqui vai um exemplo curioso: Todos nos conhecemos a história de João e o Lobo. João era um pastorzinho que nas horas vagas se divertia a assustar os habitantes da sua aldeia, gritando que um lobo lhe atacava o rebanho... quando na verdade tudo estava bem. Uma daquelas mentirazinhas tipicamente humanas, não é? Bem, por mais incrível que pareça, é exactamente isso que fazem duas espécies de pássaros (Thamnomanes schystogynus e Lanio versicolor).

Estas curiosas aves vivem em bandos com outras espécies de pássaros. No entanto, dentro do bando as diferentes especies têm diferentes funções: As cacadoras, que se ocupam da caça de insectos, e estas duas espécies, que funcionam como sentinelas. A sua função é simples: verificar constantemente se algum predador, tal como um falcão, se aproxima. Se tal acontece, as sentinelas lançam um grito de alerta, e todas as aves do bando procuram refúgio. No entanto as sentinelas, de vigia, não podem passar o tempo a cacar. Que fazer, então, quando uma das aves caçadoras voa por perto perseguindo um delicioso insecto? A resposta é bastante óbvia. A sentinela simplesmente lança o grito de alerta, fazendo com que a cacadora fuga. Assim, a costa fica livre para capturar o insecto. Em suma, as sentinelas gritam lobo. Aqui, no entanto, cessa a comparacao com a história do Joao. A história do pastor teve um final infeliz- eventualmente um lobo atacou realmente as ovelhas, e os habitantes da aldeia, fartos de serem enganados, ignoram os genuínos gritos de socorro. A história das sentinelas tem um final mais feliz, já que as cacadoras geralmente não ignoram os gritos de alerta. Porquê? Apesar de parecer muito esperto ignorar um grito de alerta, muitas vezes o risco de o fazer é simplesmente muito alto... Uma caçadora concentrada na caça, não sabe se existe realmente um falcão por perto... e ignorar um alerta verdadeiro pode significar a morte a maior parte das vezes. O custo de se esconder é apenas perder um insecto... e de qualquer forma há bastantes por perto. Para além disso, as cacadoras também não são tolas. Quando uma caçadora se encontra em espaco aberto, onde ela própria tem acesso a todo o espaço visual, só foge quando vê ela própria um predador... É tudo uma questão de pesar os riscos e as vantagens… e escolher o que é mais vantajoso. O mesmo acontece com outros animais ditos mentirosos- nem sempre mentir ou recusar a mentira é vantajoso. Assim parece que para além de mentir, os animais também percebem de economia...
Baseado em Munn, C. (1986). Birds that ‘cry wolf’, Nature, 319 (9). Pp143- 145

quinta-feira, 26 de abril de 2007

Os dentes e o esforço de guerra

Quando pensamos em esforço de guerra e acções bélicas, vêm-nos logo à ideia imagens de tanques, armas, bombas, mísseis, etc. Mas então e os dentes? Ok, não estou propriamente a falar de ganhar uma guerra mordendo o adversário até à morte… no entanto, na revista New Scientist de 10 Março vem um artigo interessantíssimo que mostra como dentes saudáveis podem ser mais importantes, até para generais, do que pode parecer à primeira vista…

O artigo fala-nos do exército inglês. Aparentemente durante o século XVII e séculos posteriores, possuir bons dentes parecia ser essencial para um soldado- os cirurgiões do exército levavam consigo instrumentos para remover dentes, e os critérios de entrada no exército especificavam a qualidade dentária que um soldado deveria ter. E, de facto, para certos tipos de soldado tais critérios eram essenciais. Um mosqueteiro (dos que usavam o mosquete, não os de capa e espada) precisavam por exemplo de bons dentes frontais de modo a poder puxar rapidamente a tampa de madeira das bolsas com pólvora antes de a usarem para carregar as suas armas…

O problema é que no século XIX o exército substituíu as antigas granadas e mosquetes por armas mais sofisticadas, e a qualidade dos dentes deixou de ser um critério de selecção… e isto ao mesmo tempo em que a quantidade de açúcar consumida aumentou… com consequências lógicas… De início nenhuma importância foi dada a doenças dentárias nos soldados, mas com o tempo generais começaram a aperceber-se de que estas podiam ser tão importantes numa campanha militar como outras doenças infecciosas.

O efeito mais óbvio foi durante a guerra entre Inglaterra e a República Bóer Sul africana. Os britânicos acreditavam que a guerra iria acabar rapidamente, mas uma série de derrotas em Dezembro de 1899 obrigou o envio de mais tropas. E a pressa foi tal que nem a inspecção mínima foi feita aos dentes dos soldados… Assim, durante a guerra os ingleses enfrentaram 3 grandes inimigos: os Boers, doenças como a febre tifóide e a disenteria… e a queda dentária. Os médicos do exército não possuíam técnicas nem meios para tratar dentes, e os soldados eram forçados a arrancar os seus próprios dentes, ou a encher as cavidades corridas com tudo o que encontrassem, desde tabaco, a borracha de botas. Mas nada feito.

Há medida que a qualidade dos dentes decaía, os soldados começaram a aperceber-se que não conseguiam comer: o tipo de duro biscoito e outros tipos de alimentos dados ao exército eram claramente demasiado para os fracos dentes dos soldados. De tal modo que um oficial reportou aos seus superiores que mesmo soldados com uns dentes em condições mais ou menos razoáveis nunca saberiam se os primeiros a desaparecer numa refeição seriam os dentes ou o biscoito!

E assim veio a grande ironia- depois de outras guerras ganhas com esforço por causa de falta de cuidados médicos ou de higiene, os ingleses esmeraram-se na introdução de condições de higiene, nas anestesias, nos antisépticos, na recruta de centenas de cirurgiões em 10 hospitais de campo… e apesar disso os homens continuavam a morrer devido à incapacidade de se alimentar com as rações militares!

O primeiro a fazer alguma coisa acerca do problema foi Frederick Newland Pedley, um famoso dentista inglês que se ofereceu para partir para a guerra para curar maxilas partidas devido a balas inimigas, e acabou a tratar dentes e dentes que nada tinham a ver com ataques do outro lado. E isto tendo de pagar todo o equipamento, viagem, etc, já que o exército continuava a não admitir a importância de dentistas numa guerra.

E os números são impressionantes. Durante a guerra dos boers, 8000 homens foram perdidos nas batalhas. Igual número morreu de doenças dentárias. Para além disso, cerca de 2000 tiveram de ser evacuados por causa de problemas nos dentes e 5000 tiveram de ser considerados inaptos porque não existiam dentaduras para substituir os dentes perdidos!

Depois de 6 meses na guerra, Pedley voltou a Londres determinado a criar um corpo de dentistas militares. Apenas 4 foram enviados para África…

A guerra dos Boers acabou em 1902. Quando a primeira guerra mundial começou 12 anos mais tarde, o exército inglês ainda não tinha dentistas… e os mesmos problemas voltaram a acontecer. Durante a desastrosa campanha de Gallipoli em 1915, por exemplo, 600 homens de uma única divisão de companhia tiveram de ser evacuados por causa dos seus dentes!

Eventualmente o exército arranjou o seu corpo de dentistas… e porquê? Por razões óbvias- um Comandante do exército inglês em França teve dores de dentes, e o exército viu-se obrigado a chamar um dentista de Paris! Uma dúzia foram então chamados ao serviço, e por volta de 1928 já existiam cerca de 813. Só anos mais tarde, no entanto, teve o exército o seu corpo oficial de dentistas…

Enfim não se pode subestimar nem as mais pequenas contribuições para o esforço de guerra… nem a vantagem de ter um oficial superior com as mesmas mazelas!


Baseado no artigo 'Can't bite, can't fight', em New Scientist de 10 Março, 2007